Bastante coisa mudou na vida do técnico português, nascido na cidade de Braga, Artur Jorge desde a conquista dos títulos da Libertadores e do Brasileirão com o Botafogo, há cerca de um ano atrás. O português trocou o Rio de Janeiro por Doha, no Catar, onde treina o Al-Rayyan em condições bem diferentes das experimentadas por aqui: sem a pressão frequente e exagerada, mas também longe da paixão dos torcedores. Sua vida pessoal, sobre a qual evita dar detalhes, também sofreu uma reviravolta. Artur terminou um casamento de 30 anos com Maria Marques, para viver um romance ¨conto da sereia¨, com Hanna Santos, neta do ídolo alvinegro, Nilton Santos e com quem vive hoje no Catar. Em conversa com ´O GLOBO` no hotel cinco estrelas onde mora, na ilha artificial The Pearl (A pérola), Artur falou sobre a vida no Oriente Médio, os desafios do futebol local e o desejo de voltar a trabalhar novamente no Brasil.
Você vai completar um ano no Catar em Janeiro de 2026. Que balanço faz desse período?
Quando cheguei, foi um período de adaptação para mim. Vinha de uma realidade completamente diferente, mas (a primeira temporada) nos serviu para conhecer o time, o campeonato, a estrutura do clube. Pessoalmente, noto que o meu trabalho vem também para acrescentar valor. É um trabalho que tem e traz mais do que só o componente técnico, porque nós temos também um papel importante na estruturação e no desenvolvimento do próprio clube. Não é fácil ganhar e ter sucesso aqui, porque há também alguma diferença naquilo que é a mentalidade que aqui se tem, que ainda é menor em termos competitivos.
Você sente as diferenças entre a paixão dos torcedores no Brasil e no Catar? Consegue andar na rua com mais tranquilidade por aqui?
Essa é uma das grandes diferenças. Aqui, sinto que as pessoas gostam de futebol, mas não é uma paixão. É uma das coisas de que mais sinto falta aqui: de viver essa paixão pelo futebol, porque eu sou um apaixonado pelo futebol. E aqui (no Catar) o futebol é um complemento e nada mais do que isso. Nós temos abordagens na rua, temos pessoas que pedem para tirar foto ou falar um pouco comigo, mas não é comparável de forma nenhuma com o Brasil ou com a própria Europa.
Como se mantém estimulado mesmo com o baixo número de torcedores no estádio?
De fato, não temos um grande número de torcedores no estádio. E esse é o grande desafio para nós também, para nos motivar a jogar em estádios que são magníficos, mas com um baixo número de torcedores. Temos que encontrar formas de pensar que estamos aqui por um propósito, e esse propósito é também trazer torcedores ao estádio, mas que não é fácil. No Brasil, a paixão é constante, que se vive de jogo a jogo, e entre jogos nós sentimos toda essa energia. Isso não existe aqui, a cobrança é zero também. É uma realidade oposta.
Agora que já viveu os dois lados, prefere a cobrança do Brasil com o estádio cheio ou o estádio vazio e a cobrança mais leve do Catar?
Como um adepto de futebol, obviamente sinto falta de ter um estádio cheio, sinto falta da paixão. Prefiro claramente a realidade de um Brasil, onde de fato nós jogamos em todos os estádios cheios e com uma energia muito vibrante, uma energia que é motivadora para mim, que me alimenta e é um combustível muito forte para o nosso dia a dia.
Quando você estava no Brasil, viralizou uma reportagem que revelava seu prato favorito (uma picanha “Osvaldo Aranha"). Já tem um preferido no Catar?
O cordeiro, que aqui é um prato muito forte e está presente em quase tudo, de várias formas, e eu gosto. Já gostava também em Portugal, portanto é uma questão de adaptação fácil. Em casa, nós fazemos mais a nossa comida, Portugal-Brasil, é um mix das duas culturas, vivemos aquilo a que estamos mais habituados.
Sua história com o Botafogo chegou ao fim ou as portas estão abertas?
O Botafogo foi um projeto que teve um princípio e um fim. Começou com um desafio de poder acrescentar e ganhar títulos, e teve depois um final com os títulos conquistados. É um projeto de sucesso e 100% vitorioso. E, como em cada um dos projetos, nós temos que andar sempre de forma gradual e pensar que novas etapas virão. Nesta altura, estou completamente focado no Al-Rayyan, mas uma nova etapa surgirá seguramente, seja para a Europa, seja até no mercado do Oriente Médio ou para voltar ao Brasil.
Clubes do Brasil te procuraram recentemente. Considera, então, voltar algum dia para o país?
Isso é uma consequência do trabalho que nós fizemos no Brasil em termos de conquistas e de um ano extraordinário. Estou muito feliz aqui e decidi vir para cá para poder fazer parte de um projeto em que me sinto muito confortável. Depois, sim, eu já disse também que faz parte do meu plano de carreira voltar a treinar no Brasil, é um mercado que me interessa muito e me parece ser um passo que mais cedo ou mais tarde irei dar.
Sua saída do Botafogo foi ruidosa, em meio a atritos com John Textor, dono da SAF. Você se arrepende da forma como a ruptura foi conduzida?
Saída é uma saída só. Já falei demais sobre isso. É uma saída que não vai trazer nunca esclarecimento para ninguém, porque é uma saída só e acho que é melhor ficarmos por aí. Porque, como eu disse, é uma etapa que foi bonita, ganhadora, de grandes sucessos, que fica marcada na história do Botafogo e na minha também. Portanto, ponto final em relação a isso.
Você costuma revisitar o momento da conquista da Libertadores? Que peso ela tem para você?
Eu revisito pela minha memória, porque o peso que esse título me traz é só positivo e acaba por me energizar em muitos dos meus momentos. Tudo que eu conquistei fisicamente está em Portugal, mas a minha memória é muito capaz de me levar para todos aqueles momentos que fazem parte de um passado muito feliz e de um passado que me faz bem. Poder revisitar isso me estimula e me traz sensações boas.
Ainda se comunica com seus ex-companheiros de Botafogo? Como é sua relação com eles hoje?
A minha relação com todos eles é muito boa, não só com os jogadores, mas também com quem faz parte da estrutura de dentro do Botafogo. Nós vemos muitos jogos aqui quando é possível, alguns deles mais importantes, nos sacrificamos um pouquinho mais, mas vemos alguns jogos. Quando fomos ao Rio de Janeiro, tivemos um almoço com todos os jogadores do elenco que fizeram parte do nosso ano de 2024 e encontramos também com elementos das áreas médicas, da análise, da segurança e pessoas que quiseram estar conosco.
O elenco do Botafogo se desmanchou de 2024 para 2025. Você tinha a percepção de que isso poderia acontecer? Influenciou na decisão de sair?
Vimos que todos nós nos valorizamos, o que fez com que houvesse uma tentação para outros lados. Era evidente que íamos ter jogadores saindo. Isso era uma questão que eu também fui vendo acontecer à minha volta, mas a minha própria valorização e aquilo que me foi proposto para sair também me fizeram pensar em mim próprio.
Não se sentiu valorizado pelo Botafogo?
A minha valorização é em cima de conquistas e de trabalho. E eu trabalhei muito, me dediquei muito, pus toda a minha paixão no trabalho, e a minha valorização veio pelos títulos. Essa é a valorização que sinto que tive e que dependia de mim próprio. Aquilo que não dependia de mim já não me compete julgar. Na verdade, quem me valorizou é quem me tem.
Textor disse em entrevista que sua vida pessoal atrapalhou a renovação com o Botafogo. O quanto ela influenciou na sua decisão?
Não tenho interesse nenhum de responder a isso (declaração de John Textor). A minha vida pessoal e a minha vida profissional se cruzaram, mas em momento algum uma teve influência em cima da outra. A minha decisão foi puramente profissional, e não há nada a acrescentar da minha vida pessoal. Estou muito bem resolvido com todas elas. Uma não impactou na outra, mas foram duas decisões importantes tomadas num momento muito próximo. Talvez isso tenha feito com que houvesse uma possível associação, mas nada tem a ver uma coisa com a outra. Minha vida profissional pode estar mais exposta a julgamento, mas a minha vida pessoal é só a minha vida pessoal, e sobre ela não falo, porque tomei as decisões que quis, no momento que quis e da forma que hoje me sinto feliz por elas.
Como foi tomar essas duas decisões grandes em tão pouco tempo?
Não é fácil. São duas decisões importantes na minha vida, são duas decisões que têm um impacto muito grande a todos os níveis, mas que eu diria que faz parte daquilo que eu usei durante toda a temporada de 2024, uma palavra que mais vezes repeti no vestiário, que é coragem. Coragem para mudar, para buscar o que nos faz sentir melhor. Portanto, foram duas decisões impactantes, que eu tomei de forma separada, mas sempre com a consciência de que estava indo para o caminho certo.

