John Textor, João Paulo Magalhães Lins, Carlos Montenegro e Durcesio Mello - Foto Reprodução/Instagram John Textor
Mesmo com o Botafogo de volta ao protagonismo no futebol brasileiro e sul-americano, questionamentos internos no clube associativo começaram a surgir diante da falta de transparência da SAF comandada por John Textor. Na terceira e última parte do especial "Ascensão, glória e incerteza", o jornal ¨O GLOBO¨ mostra como a briga judicial entre o empresário e seus sócios, em razão da crise no Lyon, jogou luz à situação da SAF alvinegra. Dentre os pontos polêmicos estão a venda de Luiz Henrique, Igor Jesus e Jair em "condições desfavoráveis" e a antecipação de valores ao Lyon do programa de sócio-torcedor, de patrocínio e até da premiação pela Copa do Mundo de Clubes 2025. Movimentos feitos por Textor para tentar salvar o clube francês, em um cenário em que, a cada promessa não cumprida aos sócios, o empresário perdia poder político na holding. Um litígio que pode se arrastar e tem cenário indefinido. E que pode terminar de diversas formas, dentre elas Textor recomprando o Botafogo, ou os sócios da Eagle assumindo o alvinegro e até uma terceira empresa (Ares Management Corporation) ganhando na Justiça o direito às ações da SAF Botafogo.
FARPAS NO CLUBE SOCIAL
Apesar dos investimentos e dos resultados esportivos do Botafogo após a chegada de John Textor, sua gestão não ficou imune a críticas nem mesmo dentro do próprio clube. Em 2024, no ano mais vitorioso da história alvinegra, reuniões do Conselho Deliberativo do associativo foram marcadas por questionamentos às decisões tomadas pelo investidor e à falta de transparência da SAF. As atas dos encontros mostram que os conselheiros se insurgiram contra a penhora das ações, o endividamento contínuo da empresa, vendas de atletas, remessas de dinheiro para o Lyon e, sobretudo, a atuação de Durcesio Mello. Ex-presidente do Botafogo e único representante do clube no Conselho de Administração da SAF, Mello deveria zelar pelos interesses do associativo, mas passou a ser visto por parte do Conselho como cúmplice de Textor, dada a relação de amizade entre os dois.
As tensões ficaram explícitas na reunião de 27 de fevereiro de 2024. Na ocasião, Mauro Sodré Maia, presidente do Conselho Deliberativo, lamentou as “infrutíferas tentativas” de obter relatórios de Mello sobre as atividades da SAF e afirmou que a “engrenagem” de prestação de contas prevista no estatuto “não tem funcionado, resultando na insciência dos poderes do clube em torno do que se passa na SAF”. O próprio Durcesio Mello afirmou que, no Conselho de Administração da SAF, participavam ele, Textor “e mais três americanos”, e relatou que até então nunca houve “uma reunião de fato, presencial ou virtual”, já que as pautas eram distribuídas prontas para assinatura, cabendo a ele apenas aprovar ou não.
Em seguida, o conselheiro Antonio Carlos Mantuano, ex-vice-presidente de futebol, disse ter recorrido à Junta Comercial do Rio para buscar informações “a respeito do que ocorre na SAF” e chamou a atenção para um ponto que classificou como “grave”: a penhora das ações da SAF pela Eagle, decisão tomada em reunião cuja ata foi assinada por Durcesio Mello. Já o contador André Souza, presidente do Conselho Fiscal, alertou para preocupações com o orçamento, o grau de endividamento e as transações entre clubes da rede de Textor. Segundo ele, as operações financeiras entre Botafogo, Lyon e Eagle “necessitam de valoração adequada e de documentação suficiente, segundo os princípios de governança corporativa, eis que há interesses da Receita Federal e dispositivos da lei cambial a observar”.
A crise se aprofundou em maio de 2024. Na reunião do dia 20, após Mello informar que havia sido reconduzido pelo Conselho Diretor como representante do clube na SAF, Sodré Maia contestou a decisão, afirmando que o Deliberativo não havia sido consultado. O conselheiro Marcos Ruffier também criticou os “constantes atrasos” no fluxo de informações da SAF e disse que as promessas de regularização “se encontram no gerúndio há dois anos”. Segundo ele, “a SAF se acostumou a agir como quer, como se o Botafogo, antes de 2022, não existisse”.
Pouco depois, o Conselho Fiscal recomendou a reprovação das contas da gestão Durcesio Mello relativas a 2022. O órgão afirmou que “não recebeu qualquer informação sobre as ações administrativas e financeiras da SAF, fato que impossibilitou uma avaliação e acompanhamento ao cumprimento do Acordo de Acionistas”. A decisão provocou reação de Textor, que defendeu publicamente Mello e chamou os conselheiros do clube de “covardes sem rosto” durante a divulgação do projeto do novo Centro de Treinamento. “O motivo que estou divulgando isso agora é porque esse é o tipo de coisa incrível que Durcesio está nos ajudando a fazer. E esses covardes sem rosto querem criar uma Terceira Guerra Mundial entre o clube e a SAF. Eles vão matar coisas como essa, entende? Somos amigos do clube associativo e ninguém me pediu para fazer isso”, afirmou o empresário ao ge.com. Após o episódio, o Deliberativo reviu a decisão, mas sete integrantes do Conselho Fiscal renunciaram em protesto.
As críticas persistiram mesmo após a conquista da Copa Libertadores. Na reunião seguinte ao título, Sodré Maia disse ter recorrido novamente à Junta Comercial para obter informações que deveriam ter sido prestadas por Mello. Segundo ele, as decisões não comunicadas ao Conselho Deliberativo eram motivo de “grande preocupação” e expunham os riscos da relação de amizade entre Mello e Textor: “Essa condição não é importante, tampouco adequada, na medida em que essa relação pode até ser ensejadora de riscos aos interesses do Botafogo”, afirmou.
Um dos documentos mencionados por Sodré Maia foi a ata do Conselho de Administração da SAF de 6 de junho de 2024. Nela, Mello e os demais conselheiros aprovaram, sem que o clube social fosse informado, a venda de Luiz Henrique, então melhor jogador do elenco, ao Lyon por 28,5 milhões de euros. A decisão incluía a antecipação do pagamento das parcelas, originalmente previstas até 2028, por meio de uma instituição financeira, com deságio. O adiantamento foi usado por Textor para tentar socorrer os cofres do Lyon, ameaçado de rebaixamento pela liga francesa. Apesar de negociado, Luiz Henrique seguiu jogando no Botafogo até o fim de 2024.
Em resposta, a SAF enviou uma carta ao clube social, lida no Deliberativo em dezembro. Nela, o CEO Thairo Arruda argumentou que “todos os atos societários aperfeiçoados pela Assembleia e o Conselho de Administração foram aprovados sem ressalvas ou votos contrários” e que “parte dos atos aparentemente atacados foram essenciais ao rápido êxito desportivo obtido pela SAF Botafogo”. O documento ainda sugeria que as cobranças tinham “pretensões eleitoreiras” e buscavam “interferir no processo político do Botafogo de Futebol e Regatas na SAF Botafogo, em especial às vésperas da decisão do Campeonato Brasileiro de 2024 e do Torneio Intercontinental da FIFA”.
Três dias depois, João Paulo Magalhães foi eleito presidente do clube social, com 573 votos, derrotando Vinícius Assumpção. Sua candidatura contou com o apoio de Durcesio Mello, que segue até hoje como representante do Botafogo no Conselho de Administração da SAF.
O CAIXA ÚNICO, OS BALANÇOS E AS DÍVIDAS
A Lei Geral do Esporte, sancionada em 2023, obriga todas as entidades que empregam atletas profissionais a publicar suas demonstrações financeiras anuais em seus sites oficiais até o fim de abril do ano seguinte. Clubes que descumprem a norma estão sujeitos a punições que vão do afastamento à inelegibilidade de dirigentes e também podem perder benefícios do Profut, programa de refinanciamento de dívidas com a União.
Já era julho quando Textor se justificou sobre o atraso na publicação do balanço do Botafogo, alegando que o processo de entrada da Eagle na Bolsa de Nova York impedia a divulgação. Segundo o empresário, “é muito complicado legalmente publicar, ao mesmo tempo, demonstrações financeiras de subsidiárias enquanto o documento principal está sob análise confidencial”. Tratado por Textor como uma tábua de salvação para a crise da Eagle e o pagamento de seus credores, o IPO (sigla em inglês para Oferta Pública Inicial, processo pelo qual empresas oferecem e vendem pela primeira vez ações na bolsa) jamais aconteceu — e a SAF do Botafogo só publicou seu balanço de 2024 na noite de 8 de agosto de 2025, exatos cem dias após o fim do prazo legal.
Dívidas da SAF já superam as do clube social
O documento expôs que, mesmo em um ano de faturamento recorde de R$ 720 milhões — decorrente dos títulos da Libertadores e do Campeonato Brasileiro —, a SAF contabilizou prejuízo de R$ 300 milhões. Desde que assumiu o clube, Textor ainda não conseguiu fechar um exercício com lucro. Por outro lado, a empresa, que começou do zero, acumulou em apenas três anos uma dívida superior à do clube social, construída ao longo de mais de um século. Em 2024, enquanto a associação devia R$ 660 milhões, a SAF já somava R$ 1 bilhão.
Uma análise detalhada dos números revela que um dos principais fatores do endividamento foi a contratação de jogadores: o Botafogo encerrou 2024 com R$ 593 milhões ainda a pagar em transferências, contra R$ 129 milhões no ano anterior — quase cinco vezes menos. Embora tenha iniciado sem dívidas fiscais, a SAF terminou 2024 devendo mais de R$ 250 milhões em tributos, dos quais R$ 199 milhões foram parcelados em um programa da Receita Federal. Para compensar o rombo, o clube recorreu à antecipação de receitas futuras: em 2024, R$ 130 milhões foram gastos com “taxas de antecipação”, contra apenas R$ 6 milhões no ano anterior.
Outro ponto de destaque foi a ressalva feita pela BDO, responsável pela auditoria externa, sobre as “transferências com partes relacionadas” — as transações entre clubes da rede de Textor, dentro do modelo de “caixa único”. Ao todo, a SAF declarou ter R$ 558 milhões a receber do grupo Eagle em decorrência de empréstimos destinados a socorrer o Lyon. Os auditores observaram que “o resultado dessas transações poderia ter sido diferente” se tivessem sido feitas com terceiros.
No balanço, a SAF classificou os empréstimos como “operações estrategicamente planejadas para maximizar a liquidez, assegurar o cumprimento das obrigações e garantir a sustentabilidade das operações do grupo como um todo”. Em outro documento, porém, o CEO Thairo Arruda reconheceu que as transferências prejudicaram o Botafogo. Em carta enviada ao Lyon, em julho, para cobrar mais de 120 milhões de euros emprestados desde 2023, Arruda admitiu ter vendido Luiz Henrique, Igor Jesus e Jair “em condições desfavoráveis, aceitando taxas de transferência materialmente inferiores ao valor de mercado desses jogadores” apenas para que os valores fossem remetidos à França.
A carta também expôs inconsistências no “caixa único”. Segundo a tabela anexada, o Botafogo enviou 38 milhões de euros ao Lyon no segundo semestre de 2024. Esse valor, no entanto, não aparece no balanço do clube francês, que é listado em bolsa desde 2007 e tem obrigação de transparência com seus acionistas. No documento do Lyon, o campo “dívidas financeiras” referente ao Botafogo está vazio — ou seja, oficialmente, não há registro desses empréstimos.
Em 2025, a SAF já antecipou ao Lyon valores provenientes do programa de sócio-torcedor, do patrocínio da VBet e até da premiação pela Copa do Mundo de Clubes. O montante comprometeu o fluxo de caixa atual: a SAF projeta que, com os recursos disponíveis, só conseguirá honrar compromissos até o fim de outubro sem recorrer a receitas de 2026. Apesar disso, Textor continuou investindo pesado em reforços. Em julho, o clube anunciou o volante Danilo por R$ 142 milhões, a segunda maior contratação da história do futebol brasileiro.
Diante desse cenário, credores históricos do clube social temem não receber. No processo de Recuperação Extrajudicial da associação, os advogados da Telefônica — que cobram uma dívida de R$ 23 milhões em aberto há mais de uma década — destacaram que o valor investido em contratações apenas em 2024 seria suficiente para quase liquidar a pendência. “Foi possível verificar que o Botafogo já ultrapassou a quantia de R$ 320 milhões em compras de jogadores, superando a soma dos valores investidos em 2022 e 2023. Para que se bem entenda: apenas com esses valores gastos com contratações neste ano de 2024 já seria possível o pagamento, sem deságio, da quase totalidade dos credores listados nesta recuperação”, afirmaram.
A dívida em questão remonta a 2004, quando a Telefônica alugou um painel luminoso na sede do clube, em General Severiano. O Ministério Público proibiu o uso do espaço para publicidade, e a Justiça determinou que o clube devolvesse o valor adiantado. Mais de vinte anos depois, nenhum centavo foi pago.
SEM IPO, EAGLE TEM MUDANÇAS, E TEXTOR PERDE PODER
Em 29 de outubro de 2024, em meio à crise do Lyon, a Eagle Football Holdings anunciou, em nota pública, um “plano de recapitalização total”. No mesmo dia, a Bloomberg, agência americana especializada em mercado financeiro, noticiou que John Textor buscava um empréstimo de US$ 300 milhões para pagar seus credores. O empresário resolveu antecipar o anúncio como resposta à publicação. No texto, a holding previa três movimentos a serem concluídos nos meses seguintes: a venda de uma fatia da empresa por US$ 100 milhões; a venda da participação da Eagle no Crystal Palace por US$ 500 milhões; e, por fim, a tão sonhada abertura de capital na Bolsa de Valores, com a consequente captação de mais US$ 500 milhões.
Esses passos eram considerados fundamentais por Textor para pagar os sócios que haviam investido na expansão do grupo e, ao mesmo tempo, afastar a ameaça de que avançassem sobre a Eagle e sobre os clubes de sua rede. Caso as medidas fossem bem-sucedidas, novos investidores entrariam na Eagle, os antigos teriam sua participação diluída e o dinheiro recebido com a venda das ações poderia ser usado para honrar dívidas.
No mês seguinte, em novo pronunciamento, a Eagle anunciou que havia recebido US$ 40 milhões de um fundo liderado pela UCEA Capital Partners, empresa de finanças sediada na Inglaterra, como parte dos US$ 100 milhões planejados na venda de ações antes do IPO. Segundo a nota, a abertura de capital ocorreria já “no início de 2025”. O cronograma, no entanto, não se concretizou: até hoje, a operação não saiu do papel.
Em 23 de abril de 2025, diante do iminente rebaixamento do Lyon, de sucessivos avisos de inadimplência enviados à Eagle pela Ares Management Corporation — que emprestara recursos a Textor para a compra do clube francês, tornara-se acionista da holding, mas jamais fora paga — e do impasse em torno do IPO, o Conselho de Administração se reuniu para promover alterações estatutárias que ajudassem a debelar a crise. A reunião foi presidida por Textor e terminou com a aprovação unânime de uma mudança na estrutura de governança da Eagle: Christopher Mallon, advogado britânico especializado em reestruturação empresarial, foi nomeado diretor independente da companhia. A mudança, aceita por Textor, reduziu o poder do acionista majoritário, que não poderia mais tomar decisões sem a anuência de Mallon.
Pouco mais de uma semana depois, em 6 de maio, o novo Estatuto Social da empresa foi protocolado junto ao governo britânico — já que a sede da Eagle fica em Londres. O documento formalizou a posição de subordinação de Textor em relação a Mallon: em seu artigo 8.1, passou a exigir que qualquer decisão dos diretores fosse tomada por maioria, sempre incluindo o voto do diretor independente. Ou seja, a partir dali, qualquer deliberação da companhia dependeria da concordância de Mallon.
Com as mudanças de governança efetivadas, em 28 de maio, a Eagle e a Ares Management assinaram um acordo para sanear dívidas da empresa. Nele, havia uma série de diretrizes que, se descumpridas nos meses seguintes, acarretariam punições a Textor — e alterariam ainda mais a correlação de forças dentro da Eagle. Entre as obrigações assumidas estava a venda imediata do Crystal Palace, outro clube do grupo, para aliviar a situação financeira da holding.
Como a venda não ocorreu cinco dias após a assinatura, a Ares emitiu um aviso de “Violação Relevante”. Pelo novo estatuto, a medida acionava os artigos 9.4 e 14.2, que concediam ao diretor independente ainda mais poder: além de sempre integrar o bloco vencedor em decisões coletivas de diretores, ele passou a ter o direito de lançar votos adicionais para assegurar o predomínio em qualquer assembleia ou deliberação escrita. Portanto, passou a poder “virar” decisões mesmo sem a concordância dos demais diretores.
Em 11 de junho, novo aviso de “Violação Relevante” foi enviado, desta vez porque a Eagle não havia recebido até o dia anterior nenhuma proposta para abrir seu capital, como previa o acordo. Com isso, a ampliação dos poderes de Mallon se manteve — e permanece em vigor até hoje.
Apenas dois dias depois da segunda violação, Textor protocolou na SEC (a Comissão de Valores Mobiliários norte-americana) o pedido formal de IPO, que até agora não aconteceu. No fim do mês, o empresário anunciou ter chegado a um acordo com Woody Johnson, dono do time de futebol americano New York Jets, para vender sua participação no Crystal Palace por 190 milhões de libras. Nada disso, porém, alterou o cenário interno da Eagle: se até abril Textor decidia sozinho, desde então é o diretor independente quem dá a palavra final sobre os rumos da holding.
GUERRA NOS TRIBUNAIS E PERSPECTIVA DE FUTURO
Às 7h28 do dia 17 de julho, John Textor recebeu um e-mail enviado por Christopher Mallon. No texto, o diretor independente informava ao acionista majoritário da Eagle sobre a “iminente necessidade de removê-lo da administração do Botafogo e salvaguardar os melhores interesses da sociedade”. A intenção de Mallon de tirar Textor do controle da SAF estava dentro do escopo do acordo fechado em maio entre o empresário e seus credores. Em uma das cláusulas, a Eagle se comprometera a “envidar todos os esforços razoáveis” para garantir que Mallon tivesse acesso ao Conselho de Administração da SAF do Botafogo e elaborasse um plano de negócios e o orçamento para o ano seguinte, com foco na redução de dívidas e passivos.
Não estava nos planos de Textor deixar o controle do Botafogo, e ele resolveu reagir. Horas após receber a mensagem, o americano convocou e presidiu duas reuniões estratégicas da SAF — o Conselho de Administração e a Assembleia Geral Extraordinária — sem informar nada a seus sócios da Eagle ou ao diretor independente. Na primeira, Textor e aliados do clube associativo aprovaram um empréstimo de 100 milhões de euros com uma nova empresa aberta por ele nas Ilhas Cayman, dando como garantia quase todas as receitas futuras da SAF, incluindo cotas de TV do Campeonato Brasileiro até 2029 e patrocínios. Na segunda, o capital social da SAF foi elevado de R$ 10 mil para R$ 650 milhões, com autorização para emissão de novas ações.
Às 16h55, entre as duas reuniões, Textor respondeu ao e-mail de Mallon sem mencionar nenhuma das deliberações tomadas naquele dia. No texto, afirmou apenas que, “em sua visão, todos os clubes pertencentes ao grupo Eagle deveriam permanecer unidos em um único grupo” e que estava “preparando uma oferta para adquirir o capital do Botafogo”.
Para a Eagle, a manobra tinha um objetivo claro: usar o empréstimo para que as novas ações fossem entregues à firma nas Ilhas Cayman, diluindo a participação da holding (hoje de 90%) e garantindo a Textor o controle total do Botafogo. Segundo a versão da holding, o empresário usaria ativos do próprio clube, dados como garantia do empréstimo, em benefício pessoal. Em nota oficial, a SAF apresentou a versão de Textor: as medidas visavam apenas “permitir a entrada de novos aportes de capital no clube”.
Na semana seguinte, antes mesmo de a Eagle tomar conhecimento das deliberações, Textor fez outro movimento, desta vez na Justiça. Em nome da SAF, processou a holding cobrando uma dívida vencida de R$ 152,5 milhões, referente a empréstimos assinados por ele em 2024 — como credor e também como representante da SAF. O pedido incluía, em caráter liminar, o arresto das ações da Eagle na SAF, concedido em primeira instância no dia 31 de julho. Na prática, a decisão impede mudanças no controle do clube, mantendo Textor à frente da operação.
Para conduzir a ofensiva jurídica, Textor contratou um time de peso na advocacia carioca: o escritório Salomão Advogados, do vice-presidente geral do Vasco, Paulo Salomão, que já venceu disputas da SAF cruzmaltina contra a 777 Partners; Ana Tereza Basílio, presidente da OAB-RJ; e Rodrigo Fux.
A estratégia da ação é clara: garantir posição favorável na mesa de negociação para seguir no controle do Botafogo. Seus aliados avaliam que a decisão impede a Eagle de vender a SAF, ampliando as chances de Textor recomprá-la. A cobrança da dívida, por sua vez, pressiona financeiramente a holding a aceitar um acordo. Enquanto se mantém no comando do clube graças à decisão judicial, o empresário ganha tempo para buscar um investidor capaz de financiar a recompra da SAF — já que não dispõe de recursos próprios.
O movimento foi visto como um golpe nas intenções dos sócios da Eagle, sobretudo os executivos da Ares Management Corporation, que querem reaver o investimento de 450 milhões de euros feito para que Textor comprasse o Lyon e têm as ações da SAF como garantia. Após conseguirem afastá-lo do controle da holding, agora buscam tirá-lo também do Botafogo, entender as finanças do clube e, possivelmente, prepará-lo para uma futura venda — até mesmo para o próprio Textor, desde que o valor seja considerado justo.
Quando tiveram acesso às atas das reuniões, os sócios da Eagle reagiram. Alegando terem sido “traídos” por Textor, que representou a holding e votou mesmo já afastado do controle, seus advogados, do escritório Mattos Filho, entraram com outra ação para anular as decisões, barrar a emissão de novas ações e impedir contratações da SAF com empresas ligadas ao Norte-americano. Mais de um mês após a petição ser protocolada, ainda não havia decisão sobre os pedidos da Eagle. Para a holding, a concessão das liminares também significaria vantagem considerável na negociação, pois retiraria poder de decisão de Textor e impediria a diluição de sua participação.
Já quanto à dívida de R$ 152 milhões cobrada pela SAF, a Eagle afirmou no processo que os empréstimos já foram pagos, apresentou comprovantes e pediu a extinção da ação e a revogação do arresto das ações. Segundo a petição, o processo de cobrança “é reflexo da confusão contábil instaurada pelo Sr. Textor nas relações intercompany, enquanto ainda estava na gestão em todas as frentes. Assim, ao mover execuções não lastreadas e inseridas em uma contabilidade confusa, o Sr. Textor procura se servir dos processos para pressionar a Eagle Bidco e, com isso, se encastelar no poder pelo tempo que conseguir”. Ainda não houve decisão.
Paralelamente ao embate judicial, Textor busca um parceiro para ajudá-lo a recomprar a SAF e tenta convencer seus sócios na Eagle a aceitar sua proposta. Em meados de agosto, reuniu-se em Nova York com executivos da Ares e ouviu deles uma sinalização de que poderiam vender a SAF, desde que o preço fosse adequado e ele apresentasse garantias de pagamento. Desde então, o Norte-americano negocia com o magnata grego Evangelos Marinakis — dono do Nottingham Forest, da Inglaterra, do Rio Ave de Portugal, e do Olympiacos, da Grécia — para tentar viabilizar a operação. As conversas, no entanto, ainda não avançaram.
No último dia 10/9, os advogados da SAF protocolaram no processo movido pela Eagle uma carta de compromisso em que Textor garante não transferir as ações da SAF para sua empresa nas Ilhas Cayman. Na petição, a defesa afirma que "não se opõe" à suspensão das reuniões contestadas e conclui que tem “plena confiança de que as partes irão alcançar uma composição amigável em breve”. Publicamente, Textor tem repetido que "a briga acabou".
Os movimentos mais recentes são interpretados por quem acompanha a disputa como uma tentativa de convencer os sócios a encerrar o litígio judicial. Apesar das declarações otimistas de Textor, a Eagle ainda não vê um acordo próximo. No início desta semana, os advogados da holding responderam à petição da SAF propondo uma série de condições para que um consenso seja costurado, como a obrigação de o diretor independente Christopher Mallon participar de todas as reuniões da SAF e a suspensão de qualquer ato assinado sem a participação dele — o que, na prática, esvaziaria o poder de Textor.
Na última quarta-feira, a SAF rejeitou os termos do acordo: em mais uma petição protocolada na Justiça, os advogados da companhia alegaram que "o formato do ajuste e as condições sugeridas não se justificam no estágio atual". A defesa da SAF, ligada a Textor, também afirmou que uma nova Assembleia Geral da SAF realizada no último dia 12 deliberou que "não seriam implementados quaisquer dos atos aprovados nas reuniões do dia 17 de julho de 2025" — ou seja, Textor e seus aliados se comprometeram a não levar a cabo a transferência das ações da SAF para uma empresa nas Ilhas Cayman — e pediram que o processo seja extinto. Ainda não há uma decisão sobre o pleito.
Fora do âmbito da Justiça, a Eagle aposta em uma estratégia de longo prazo. Seus advogados já pediram que o conflito seja encaminhado para a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Fundação Getulio Vargas (FGV), como prevê o estatuto da SAF. Nesse cenário, a resolução pode levar pelo menos um ano — tempo que tanto pode favorecer a Eagle, caso a situação financeira do Botafogo se deteriore, quanto atrasar a recuperação do valor investido, que só viria com o fim da disputa. O futuro do clube segue em aberto.
O litígio no Brasil, no entanto, não é o único enfrentado por Textor. No Tribunal Superior de Justiça da Inglaterra e País de Gales, ele responde a outra ação movida pela Iconic Sports, que se tornou sócia da Eagle após investir US$ 75 milhões para a compra do Lyon. O contrato previa a recompra das ações caso a Eagle não abrisse capital na bolsa. Com base nessa cláusula, em junho deste ano, a Iconic exigiu a recompra por US$ 94 milhões (valor com juros). Textor contestou, e a Iconic levou o caso à Justiça.
As partes envolvidas na disputa pelo Botafogo acompanham o processo britânico de perto porque uma das punições previstas no contrato, caso Textor não recomprasse as ações, é a transferência de sua participação para a Iconic. Ou seja, a retirada de Textor do controle da Eagle é uma das consequências possíveis, o que mexeria diretamente no tabuleiro da negociação pelo Botafogo. O caso corre em segredo de justiça.
Para quem acompanha o imbróglio de perto, há também uma terceira possibilidade de desfecho, em que o Botafogo não ficaria nem com Textor nem com a Ares Management, sua principal credora. Circulam pelo clube rumores de que os demais acionistas minoritários da Eagle — Michelle Kang, Iconic Sports e Jean-Pierre Conte, presidente da Genstar Capital —, que já estão no controle do Lyon, estudam a possibilidade de comprar mais ações da holding para que possam assumir também o alvinegro. As negociações, no entanto, ainda estão longe do final.
Com informações O GLOBO